Família Completa

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Familia em 27 de dezembro de 2009

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segunda-feira, 5 de abril de 2010

A FACADA

A Facada

Avenor Augusto Montandon

Fui chamado com urgência ao hospital. Um homem de meia idade tinha sido esfaqueado. Seu estado era muito grave. Os sinais vitais denunciavam um choque hemorrágico.
Entrei direto para o centro cirúrgico onde o paciente estava sendo anestesiado.
A anestesista foi logo me avisando que o caso era grave demais, e que embora estivesse infundindo sangue e vasopressores, a pressão arterial não era detectada e apenas tênues pulsos carotídeo e femoral eram percebidos.
Numa rápida inspeção confirmei as informações passadas pela colega e constatei uma pequena lesão perfuro-cortante, de uns dois centímetros, na região epigástrica (linha média do abdome superior). Não havia dúvida de que aquele ferimento tinha penetrado o abdome e lesado uma víscera ou algum vaso importante. Enquanto escovava as mãos imaginei que o estômago teria sido lesado. Ou quem sabe o fígado? Certamente havia uma hemorragia interna importante que deveria ser contida rapidamente, sob pena de choque irreversível, já iminente.
Ao longo de tantos anos de experiência como cirurgião, eu não tinha quase nenhuma preocupação com as dificuldades que normalmente encontraria numa cirurgia desse tipo. Deveria ser rápido e preciso, ingredientes essenciais para conter o sangramento, sob pena de perder o paciente.
Durante os breves instantes em que me preparava para entrar no campo operatório, o paciente parecia perder totalmente os sinais vitais.
Tendo sido treinado em hospital de urgência, não gastei mais do que 1 ou 2 minutos para ter acesso à cavidade abdominal com uma incisão (corte) de uns 20 centímetros na linha média da barriga, acima do umbigo. Minha surpresa foi muito grande ao constatar que não havia quase nenhum sangue no interior do abdome que justificasse o choque hemorrágico que estava por levar o paciente a óbito. Numa inspeção geral das vísceras, também não pude evidenciar nada que o justificasse!
Alertado pela anestesista sobre a piora do estado do paciente, senti-me pressionado a localizar o sangramento. Só podia ser para dentro do tórax, concluí, estendendo a minha incisão para cima, cortando o osso externo onde se articulam as costelas no tórax anterior, como se procede nas cirurgias de acesso ao coração. Tinha a esperança de poder encontrar numa das cavidades pleurais, um enorme derrame pleural de sangue (hemotórax). Certamente a faca teria tomado o caminho ascendente, penetrando um dos pulmões. Tentaria a hemostasia (conter o sangramento) e, uma vez drenada a cavidade pleural, era só concluir a cirurgia com as suturas dos tecidos cortados, e com a reposição das perdas, o paciente estaria salvo.
Minha surpresa foi ainda maior quando, acompanhando o trajeto que a arma havia tomado, cheguei no.... CORAÇÃO!! Isso mesmo! Conforme previra, a faca penetrara o tórax e acertou o coração! O mais falado órgão do corpo, suposta sede dos sentimentos, da afeição, do amor, do sofrimento - havia sido perfurado.
A faca atingiu o ventrículo direito e este deixou extravasar para o seu entorno uma grande quantidade de sangue que, contido pelo pericárdio (tipo de membrana), provocou o que nós médicos chamamos de derrame pericárdio, causando um bloqueio, que constrange os batimentos cardíacos. A perda sanguínea, aliada àquele bloqueio insistia em manter o paciente em estado grave!
Heroicamente o coração continuava cumprindo a sua função, mas, a cada pulsar mais um jato de sangue era jogado fora! Precisava interromper aquele sangramento e, para tal, lancei mão de duas pinças que, devidamente presas nas bordas da ferida, puderam me dar uma trégua para preparar a sutura.
Como já esperava, os batimentos foram se tornando cada vez mais tênues até que pararam. Aproveitei então aquela providencial parada cardíaca para dar os pontos na ferida da parede do ventrículo.
Tudo isso em menos de 30 segundos! Foram dois pontos em “U”, suficientes para fechar o ferimento e interromper o sangramento. Imediatamente iniciei a massagem do coração que, entre as minhas mãos, relutou em cumprir espontaneamente a sua missão de bombear o sangue, como se rebelasse contra essa nossa ofensa e intromissão.
Por alguns minutos, espremendo o nobre órgão entre meus dedos pude substituir a sua função, permitido que o sangue circulasse com pressão suficiente para manter oxigenados os órgãos, incluindo o próprio coração. Minutos depois, para nossa euforia, o laborioso centro da circulação reiniciou sua luta contrátil, de inicio meio titubeante, arrítmico, para gradualmente assumir um ritmo seguro e confiante.
- E aí doutora, dirigindo-me à anestesista, - e a pressão?
- Tá melhorando! Com mais uma bolsa de sangue vai normalizar. - Foi categórica.
Extenuado pelo esforço e sentindo a firmeza do resultado, conclui a exaustiva tarefa de recompor os vários planos cirúrgicos.
No dia seguinte de manhã, menos de 12 horas do término da cirurgia, conversei com o Sr. José, sobrevivente de uma facada no coração.
- Bom dia! Sou o médico que te operou!
- Bom dia doutor. Obrigado. Não vi nada. Pensei que tinha morrido! Depois da facada que a Margarida me deu eu achei que num tinha chance de escapar. Ficou tudo escuro logo depois!
- Quem é Margarida? perguntei.
- Minha mulher - respondeu constrangido.
- Sua mulher?
- Isso mesmo. E continuou em tom de desabafo:
- Eu fui receber um dinheirinho na Caixa Econômica de um seguro desemprego, e ia indo pra casa. Resolvi passar num boteco que tem no caminho. e tomei uns tragos. Quando eu cheguei, em casa ela tava me esperano e me enfiou a faca! Num entendi seu doutor. Eu tava até levano um presentinho pra ela!! Ela é boa mas é ciumenta demais - concluiu.
- Seu Zé, você sabia que a facada foi no coração?
- Mesmo Doutor? Então como é que escapei?
- Sorte seu Zé, muita sorte!!!
Fui categórico...

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