Família Completa

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Familia em 27 de dezembro de 2009

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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

UM PARTO

UM PARTO

Avenor Augusto Montandon

Nós estávamos terminando o nosso estagio em obstetrícia, cumprido ao longo de três meses na unidade hospitalar denominada U.I.S.S. – Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho, uma cidade satélite de Brasília, distante uns 20 km do plano piloto.
Essa unidade havia sido construída para servir de hospital escola da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. Minha turma, completando o quinto ano, era a primeira de medicina da UNB.
Tínhamos tido uma ótima orientação, graças à dedicação e excelência dos nossos professores. Em especial, o nosso estágio na obstetrícia, tinha nos oferecido a teoria e a prática necessárias ao exercício do atendimento em pré natal e parto, natural e cirúrgico. Me sentia muito seguro com a prática adquirida.
Podia ser umas 11 horas da noite e o plantão estava calmo, sendo supervisionado por duas médicas obstetras. Não havia nenhuma mãe em trabalho de parto e no pós-parto estavam duas puerperas que tinham dado á luz no final da tarde.
Preparávamos para dormir, na expectativa de não sermos acordados na madrugada, quando o enfermeiro da maternidade me chamou no pronto socorro. Imaginando que tivesse uma gestante aguardando, fui à sala de atendimento obstétrico e não encontrei ninguém esperando.
- Cadê a paciente Geraldo?
- Não tem paciente não doutor. Tem um senhor no saguão de entrada querendo falar com o médico.
Dirigi-me á entrada e lá estava um senhor esguio, moreno, um pouco calvo, aparentando uns 40 anos. Mostrava-se ansioso andando de um lado para o outro da sala. Falava muito mal o português. Era de origem árabe, e pelo visto, havia pouco tempo que estava no Brasil.
- O Sr. é o médico que vai comigo? perguntou.
- Sim, tomando conhecimento naquele momento de que o atendimento era domiciliar.
- Do que se trata? perguntei e desisti de decifrar a resposta, pois não entendia direito qual era o caso. Deduzi que sua mulher teria tido um parto em casa e eu deveria acompanhá-lo na remoção da parturiente e o nenê para o hospital. O Sr. Mohamed (esse era seu nome), insistiu que fosse com ele no seu carro e, a meu pedido, a ambulância nos seguiu.
Não era distante. Um prédio de três andares, simples com uma escada, íngreme estreita e escura. O apartamento ficava no terceiro andar.
O Sr. Mohamed me convidou a entrar, gesticulando, como melhor forma de comunicação. Na simples e pequena sala algumas pessoas cochichavam entre si.
Fui conduzido a um quarto onde repousava uma senhora obesa e grande que se encolheu debaixo de vários cobertores com a minha presença. Pedi que saíssem as solidárias senhoras presentes ao lado da cama. Uma delas, franzina e impassível, que se identificou como parteira, permaneceu no quarto.
– Boa noite doutor, disse. Esse tipo de parto eu não faço, mas se o senhor quiser eu posso ajudar. Já apreensivo com as condições do ambiente e a situação inusitada que estava se revelando, pedi que descobrisse a paciente, que à menor aproximação se retraía mais. Descoberta a paciente já pude deduzir sobre a gravidade da situação obstétrica em que me encontrava. Um cianótico (roxo) pesinho de nenê entre as obesas coxas anunciavam um parto podálico (apresentação invertida). Pelos meus conhecimentos recentemente adquiridos, não era um procedimento que pudesse ser feito em domicilio e quase sempre culminava em cesariana, por implicar alto risco para o nenê e para a mãe. Recobri então a amedrontada mãe e mandei chamar o marido:
- Sr. Mohamed, temos que levar a sua senhora para o hospital. Não dá para fazer o parto aqui. É perigoso para a mãe e para o nenê.
- O senhor não é médico?, falou com o português difícil de entender.
- Mais ou menos, respondi um pouco hesitante.
- Pois então faça o que é preciso aqui pois ela não fala português, nunca esteve em hospital, e se recusa a sair daqui!
O tom foi de ameaça e senti que a coisa estava mesmo ruim. Mesmo se insistisse em transportar a paciente, imaginei como seria dificil descer aquela paciente enorme, com o feto em sofrimento, por aquela escada que mal cabia uma pessoa andando!? Para agravar minha apreensão eu estava sendo fulminado pelos olhares das pessoas presentes!
Prevalecesse o bom senso e eu fugiria dali. Dominado pela autoconfiança e a ansiedade por tentar a solução do caso, enchi-me de ânimo reforçado pela oferta de ajuda da parteira que estava determinada a ser minha auxiliar na solução do impasse.
Pedi então uma “intérprete” e fui à luta.
- Abra as pernas!!!
- Respira fundo, faz força! Abre mais! - imediatamente traduzido pela intérprete que me ajudava na comunicação.
Numa sucessão de manobras, bem aprendidas nos manequins de ensino, puxa daqui, puxa dali, aperta acolá, depois de muito suor, sangue e cocô o nenê saiu!
Era uma menina enorme, devia ter uns 4,5 kg. Como era esperado, nasceu muito mal; completamente sem reflexos cianótica (roxinha) e com parada respiratória...
A intérprete descompensou: aos berros de “- está morta! -morreu! -meu Deus!”
-Tá morta coisa nenhuma, cala essa boca e ajuda! reagi.
Quando me preparava para a respiração boca-a-boca, imediatamente após a limpeza da garganta da nenê com um pedaço de pano, a recém nascida inspirou profundo!
Que alivio!
- Isso filhinha, mais uma vez !
- De novo! Isso mesmo, vamos lá, a vida lhe sorri!
E ela foi ficando com a cor rosada, as mãozinhas se dobraram, os reflexos surgiram e o choro alto se fez ouvir em todo o apartamento!
- Graças a Deus, conseguimos,... desabafei.
As expressões mudaram. Surgiu um cafezinho quente, um tapinha no ombro dado por algum titio... Alegria geral, até da mãe, que suada e trêmula, balbuciava sorrindo algumas palavras por mim desconhecidas.
O pai, satisfeito, orgulhoso, veio ao meu encontro quando eu acabava de enrolar a criança nos panos para levá-la ao hospital, e enfiou um maço de notas no bolso do meu jaleco.
- O senhor me desculpe, Sr. Mohamed, mas isso eu não posso aceitar, falei devolvendo o dinheiro.
- Isso não é pagamento não doutor. Isso que o senhor fez não se paga, respondeu o árabe ajudado pela intérprete. – Isso é apenas uma demonstração de gratidão. O senhor aceita e a gente não briga! ....sendo categórico.
- Tá bem, tenho que levar a nenê para o hospital para ser examinado!
- Eu levo o senhor. A ambulância já voltou para o hospital!
Todo sujo de sangue, com a recém nascida no colo, cheguei no hospital as três horas da manhã. Despedi-me do senhor Mohamed, e logo na entrada do pronto socorro enfrentei uma recepção hostil, com ameaças de punição, por parte das médicas responsáveis pelo plantão.
A despeito do cansaço e das ameaças, com a sensação do dever cumprido, fui deixar a nenê no berçário para ser limpa e examinada.
Dois dias depois fui fazer a visita domiciliar - uma obrigação imposta pela faculdade - com o objetivo de analisar a situação do paciente atendido, no seu contexto familiar. A menininha já tinha recebido a alta hospitalar, felizmente sem nenhuma seqüela, a despeito do trauma obstétrico.
Fui muito bem recebido pela família e conduzido ao quarto onde a mãe repousava sorridente ao lado da recém nascida. A pequena Hamda, vestida com coloridas vestes, ostentava na cabecinha um turbante vermelho, brincos nas orelhas, uma exuberante maquiagem no rostinho redondo, e esboçava um sorriso como se quisesse me agradecer por te-la ajudado a vir ao mundo.

Um comentário:

  1. Mais um lindo texto! Encontrei sua página por acaso.Estou adorando ler suas históras. acho que ler e contar causos é coisa de mineiros né? Tenho página onde me atrevo a rabiscar uns causos também. Já escrevi um sobre parto na roça. O parto, as pamonhas e o jipe encravado.Quando quiser ler acesse o Recanto das letras. Sou Maria Mineira. Um abraço.

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