Família Completa

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Familia em 27 de dezembro de 2009

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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

RENASCER

RENASCER

História de um médico operado.

Avenor A. Montandon

Fazem exatamente 96 horas que iniciou a minha cirurgia de vesícula- às 9:22 do dia 8 de dezembro de 1989 no hospital Dom Bosco.
Jamais imaginei que um dia eu seria o operado. Acho que se tivesse a exata dimensão da dor e do desconforto eu não teria me exposto a isso. Assentado na sala de casa, sentindo dor nas costas, na barriga e na cabeça, sem posição direito para nada, tendo na resignação esperar que o alívio venha progressivamente na proporção direta do tempo. É preciso descrever para não olvidar. Não esquecer é importante para a minha formação como gente e como médico. O paciente não passa ao médico, e não tem como transmitir o que ele sente. Quantas cirurgias dessas eu já fiz e nunca poderia avaliar olhando e conversando com o paciente o tamanho desconforto e tamanha dor e indisposição. Basta acrescentar o estado de espírito e a coisa então fica enorme. A gente sente como um animal ferido.
O paciente fala, mas você desconfia de outra maneira. Depois, a capacidade de esquecer o sofrimento com o transcorrer do tempo, aliada ao bem estar pela eliminação do mal que o acometia, faz com que fique ligado ao inconsciente indevassável os momentos mais sutis que caracterizavam o evento.
Sempre fui um dispéptico crônico. Desde menino tive intolerância alimentar e alta sensibilidade à bebida e comilanças, vomitava em viagens. Passava mal com 10 copos de chope. nos últimos 20 anos a pirose noturna foi minha companheira inseparável. os antiácidos, pouco a pouco, foram perdendo o seu efeito durável. Só um tamponamento efêmero. Se não fosse pela descoberta mais recente dos antagonistas de hidrogênio, acho que minha vida teria sido impraticável pela impossibilidade de dormir com a dor epigástrica e azia. Procurei as causas. Tinha quase certeza de que possuía uma úlcera péptica incipiente junto com uma gastrite violenta. Procurei conviver assim. Relutei em fazer endoscopia para confirmar. Nós, os médicos somos covardes quando se trata de investigar doenças em nós mesmos. A apreensão em descobrir doenças graves ou imaginar complicações dos exames ou tratamentos nos afugenta da propedêutica. Mediquei a mim mesmo enquanto pude, até que ao retornar ao Rio, em princípios de novembro não me senti bem na viagem. Aqui, após ingerir uma barra de chocolate à noite, fui acometido de violenta dor em cólica no epigástrio que nas duas horas que perdurou, quase me matou. Para mim foi inequívoco o diagnóstico. Estava tendo uma cólica biliar ou alguma outra complicação séria. No dia seguinte, já refeito fui submetido ao ultra-som que foi taxativo: vesícula com cálculos. E para complicar os outros exames bioquímicos revelaram alterações hepática concomitantes com altas taxas de transminases. Fiquei preocupado. Resolvi me submeter à endoscopia realizada numa manhã de sábado no hospital dia 11 de novembro. Surpreendentemente a única revelação - esofagite de refluxo. nada de úlcera, nada de gastrite. Pude então concluir que a não ser pela esofagite a minha doença toda advinha da situação da vesícula. Conversei então com o Dr. Eli, quem me operaria. Ele me recomendou a normalização dos exames e depois quando quisesse me “racharia”no meio. foi uma fase de enfrentar psicologicamente difícil. Imaginar-me operado estava parecendo um pesadelo. Ponderei, enquanto refazia semanalmente os exames de sangue, que prevalecer sem cirurgia era, no mínimo arriscado. Podia ter outras cólicas insuportáveis como realmente tive 2 dias após a 1ª (mais duradoura e mais intensa), podia ter uma obstrução, uma pancreatite, uma colangite e até mais tarde um câncer. Marquei a operação.
Ficou acertado para o dia 8 de dezembro, uma sexta-feira. Queria tempo para me recuperar para as festas de Natal e fim de ano e também aproveitando a calmaria natural do trabalho no mês de dezembro. Iniciar vida nova no ano novo. Começar a nova década desencucado. Os dias que precederam foram estressantes. Acordava à noite sobressaltado, imaginando até o impossível. No dia 8, finalmente, levantei-me às sete, tomei um banho, raspei dos mamilos aos genitais, aparei a barba, fiz a maleta de roupas e fui para o hospital. Às 8:30 fui para a sala onde a equipe (Eli, Marcílio, Edson e Helena) aguardava. usaram monitor por exigência minha. A Helena, muito acadêmica se propôs a fazer uma peridural com cateter concomitantemente com a geral para permitir com injeção de morfina um ponto mais confortável. Não vi nada a partir do momento que me injetaram o hipnótico. Só tive noção de coisas horas depois que voltei ao quarto. Permaneci com analgesia até o dia seguinte, mas advieram, é claro, as complicações: soluço incontrolável e retenção urinária séria. Forcei vômito onde eliminei enorme quantidade de liquido de estase preto e grudento como se fosse pixe. Dormir foi impraticável, não obstante as drogas. O desconforto era total. Se estivesse sentindo a dor acho que teria morrido. Eu mesmo tentei passar a sonda vesical, uma bobagem, e ardeu tanto que fiquei com ela pouco tempo. Tive que tirar sem drenar toda a urina. Aliada ao soluço, uma alergia manifestada por uma coceira alucinante no nariz que cedeu com fenergan injetável.
Queriam que continuasse sem urinar com hidratação parenteral. Recusei-me. Disse que só tomaria o soro quando normalizasse a urina. O soluço só passou 24 horas depois da operação, bem como a retenção. Como seqüela do soluço fiquei com uma dor diafragmática insuportável que parecia torcer o esôfago ao eructar. Isso me impediu simplesmente de dormir a 2ª noite. nessas alturas, a dor já estava com a corda toda e apesar de tomar remedinhos não cedia. Pedi remédios fora da prescrição que me foram dados até por ignorância da enfermagem e do plantonista com o 1º banho e a 1ª evacuação. 48 horas depois da cirurgia me senti melhor. Muitas visitas me impediram até de descansar mais, porém, a verdade é que a falta de posição para assentar e deitar é que eram os fatores mais importantes. No dia 11, segunda-feira, tive alta. O Eli conversou comigo como se fosse um leigo. A Cecília e Sancho que foram meus companheiros de quarto me transportaram para casa (Cristian estava viajando para Barbacena nos exames médicos da EPCAR). Aqui em casa, me senti mais confortável. Minhas funções parecem normais. Pude ver o filme com toda a cirurgia, filmado pelo Zé Augusto. Agora, 96 horas e 10 minutos após terminada a cirurgia me recupero. E tiro daí grandes lições:
- Não somos melhores nem piores que ninguém.
- Somos míseros mortais prestes a ceder espaço a qualquer momento nesse mundo.
- O limiar da dor não pode ser traduzido em palavras.
-Muitas das complicações como estase, alergia, retenção urinária e até uma hipersensibilidade na face externa da coxa deveram-se à anestesia complementar dispensável.
- A vida é importante, mas só tem sentido se somos fortes para ter coragem de decidir e suportar as conseqüências.
- A tolerância é uma virtude imensurável. Acho que o nível social e cultural é inversamente proporcional à capacidade de tolerar.
- Somos totalmente impotentes diante dos fatos consumados, onde os valores pressupostamente importantes caem por terra.
- A vida é como diz o poeta : um eterno renascer...


Araxá , 12/12/89
19 anos completados, hoje que recebi o diploma de médico! (UNB 1970)

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