Família Completa

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Familia em 27 de dezembro de 2009

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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

PERGAMINHO DE MELGAÇO

PERGAMINHO DE MELGAÇO

Avenor A. Montandon

Bom Jesus (GO), 11 de Setembro de 1989.
Aguardo num quarto de um simples hotel nesta cidadezinha goiana o momento de voltar a ligar para Sta. Helena de Goiás a 100 km daqui em direção noroeste para saber se deram noticias de onde estão e a que horas chegarão da pescaria no Pantanal, o Sebastião (Dr. Sebastião das Perdizes), seus amigos Julinho e Augusto, seu irmão Neneu seu filho Rodrigo, meu filho Sancho e Sr. Joaquim que estavam comigo no inicio da viagem há 4 dias. A ansiedade me domina, meus nervos estão à flor da pele. Noticias de meia hora atrás ainda muito superficiais falam em problemas com pneus em Rondonópolis a mais de 600 km daqui. Não entendi bem mas como há mais de 8 horas cheguei aqui no caminhão com o freezer e o barco e tendo saído juntos de Barão de Melgaço ontem às 14 horas, algo mais deve ter acontecido. Serviu pra me deixar menos tenso essa noticia pois nestas horas a gente só pensa no pior. O pesadelo parece ainda não ter terminado. Só terminará quando puser meus pés a salvo na porta de minha casa em Araxá.
Tudo começou no dia 6 quando dei inicio à viagem que havia sido planejada há mais de 3 meses. Mesmo sabendo que é difícil, sacrificante e dispendioso esse tipo de programa, resolvi concretizá-lo apesar de ter sido assaltado por maus presságios no últimos dias. Contornei problemas com plantões, arrumei minhas coisas, aticei o Sancho e o Sr. Joaquim e finalmente saímos às 12 horas, no meu carro, um monza branco 1982.
Ficamos de encontrar com o Sebastião em Perdizes e o fizemos cerca de 1hora depois (erramos em 10 km a entrada para o sitio Daniele).
Feitos os acertos, ficamos de nos reencontrar em Uberlândia, mas a 50 km mais à frente o meu pára-brisa foi estilhaçado por uma pedra lançada de um caminhão. Foi uma explosão impressionante e os estilhaços forraram o interior do carro, e os nossos colos. Alguns passaram pela minha testa e braços e provocaram ferimentos que sangraram. Logo em seguida o Sebastião chegou e após removermos os estilhaços prosseguimos até Uberlândia. Confesso que ali tive vontade de retornar para casa, mas seria uma covardia e uma tremenda frustração de todos, principalmente do Sancho que manifestava nos olhos evidente empolgação.
A viagem se atrasou em mais ou menos 2 horas quando repusemos o pára brisas. Combinamos então seguir juntos até à noitinha, e cerca de 100 km à frente, paramos num posto para tomar algo. Devia ser umas 19 horas. Resolvi tomar mais um guaraná e o Sebastião saiu na minha frente uns 5 minutos. Já escurecendo, ouvindo os Beatles, senti o carro estranho, foi como se tivesse desligado algo.
Estacionei no acostamento e tomado de uma ansiedade enorme tentei em vão fazê-lo funcionar. Fizemos sinal e uma camionete parou. O motorista propôs nos rebocar até Bom Jesus a mais ou menos 15 km dali. Providencialmente havia trazido uma corda grossa de nylon e deu certo. Pouco depois o nosso amigo desconhecido nos deixava à porta de uma oficina mecânica prestes a fechar. Para aumentar o transtorno o veredicto foi trágico. A correia dentada havia sido avariada e estourou o cabeçote do motor: conserto para dois dias, se achasse as peças! O mecânico esguio, claro de aspecto confiável foi taxativo: nos deixaria no hotel próximo e no dia seguinte tentaríamos achar outro cabeçote, etc.
Para mim a viagem estava encerrada ali, mas precisava avisar o pessoal que seguira à nossa frente para Santa Helena. Recolhemos o carro e o Maurino (mecânico) nos trouxe no hotel (Diplomata – o melhor da cidade – sem telefone, sem ar condicionado, e os sanitários eram no corredor). Deixamos o Sancho e o Joaquim e saímos para tentar o telefone do posto Cinqüentão em Sta. Helena onde tínhamos programado nos encontrar. Telefones em pane! Restava ir até lá – 100 km! O Maurino se propôs a ir. Estava cansado e sujo e pedi ao Sr. Joaquim para acompanhá-lo. Viemos eu e Sancho para o hotel, comemos algo, vimos televisão, tomamos banho e ansiosos com a volta deles não dormi direito. Afinal haviam passado mais de 3 horas do horário programado do encontro.
Às 2 horas da manhã chegaram. O Sebastião tinha voltado e foi categórico – Sem nós ele não prosseguiria viagem.
O Maurino (imagine!) se predispusera a nos levar no seu carro! De graça! Pagaríamos as despesas. Achei aquilo tudo uma loucura! Ressuscitei meu entusiasmo das cinzas, juntei os cacos e naquela mesma hora saímos. O Sancho foi com o Sebastião. Eu e Joaquim passamos nossa bagagem para o carro do Maurino (um Fiat 147). Coube quase tudo. Deixamos poucas coisas para traz. Maurino levou sua mulher, uma atendente de enfermagem de nome Nilda, para lhe fazer companhia na volta. E a loucura prosseguiu...
Fiquei por entender porque o Maurino faria aquilo. Não era 50, 100 ou 200 km. Eram mais de 800 km! Qualquer coisa como a distância entre Araxá e Rio de Janeiro! Sem falar num detalhe: A estrada em grandes trechos nos apresentaria em péssimas condições e o movimento das carretas era coisa de louco!
Vínhamos à vista uns dos outros, parando ocasionalmente. Consegui tirar poucos cochilos. Almoçamos todos em Rondonópolis, num posto chamado Trevão. Ali me propus dirigir para o Maurino que não havia pregado o olho. O Sebastião saiu na frente e eu me mandei sem saber que rumo tomaria. Todos no carro dormiram. Para meu desespero total, depois de andar 130 km, inclusive em trechos sem asfalto, vi a primeira placa indicativa: “ BEM VINDO AO MATO GROSSO DO SUL” , Coxim X km, Campo Grande X Km. Tinha pego o caminho errado!
Quase fiquei louco! Imagine, com todos os reveses, o cansaço a vontade de chegar, mais 270 km até o destino, sendo os últimos 70 km de terra e eu tendo errado cerca de 260 km! Deu vontade de morrer. Era muito azar!. Alucinado, todos perplexos, virei para traz. Cada km era uma eternidade. O pesadelo continuava. Finalmente, 2 horas e meia depois, de volta ao Trevão. Passamos direto, agora para Cuiabá. Já escurecia quando chegamos a Barão de Melgaço.
Estávamos todos tensos e extenuados. Aquele trecho de estrada de terra, cheio de trepidação, pedras e curvas parecia o ultimo reduto da ansiedade que nos dominava. O Joaquim queixava câimbras e sentia-se muito mal. As rugas em todos, à exceção da Nilda, gordinha e baixota, nascida no Rio Grande do Norte, pareciam mais acentuadas. Não chegava nunca. Só de pensar na volta do Maurino (queria sair de volta logo que chegássemos), aumentava a minha angustia. Para completar o drama um pneu estourou. Cansados trocamos. Voltamos à luta. Faltava mais ou menos uns 20 km ainda.
Quando estávamos por anunciar as luzes de Melgaço, talvez uns 2 km, outro pneu furou. Aí, sem estepe, me propus chegar a pé para pedir socorro. Foi o que fiz. Cheguei a pé em Barão. Mal pude admirar a cidadezinha simpática que se escondia entre as montanhas e o Rio Cuiabá. Vivendo praticamente da Indústria pesqueira tinha ruelas estreitas e tortuosas.
Fui até a pensão do Aparecido onde nos encontraríamos. Lá me disseram que haviam ido a um restaurante. Eram 8 horas da noite quando os encontrei banhados e alegres tomando cerveja e comendo iscas de pintado como “tira gosto”. Acionei o socorro e parti para uma ansiada cerveja.
Fomos todos deitar cedo. Convencemos o Maurino a dormir e voltar no dia seguinte cedo. Era previsto que sairíamos para a pescaria às 7 horas da manhã. Iríamos em 2 barcos. Ao todo éramos 10 adultos com o barqueiro (Ricardo), 2 crianças – Sancho e Rodrigo. Até 9 horas não havíamos reunido para deslanchar a viagem de 90 minutos rio abaixo. Um dos motores havia tido problemas e por isso só às 13 horas embarcamos.
Já tínhamos comido e bebido. Aliás o Sebastião estava caindo de bêbado. Cerca de 40 minutos rio abaixo, esquecidas as adversidades e admirando a natureza já um tanto sofrida pela ostensiva exploração, o tal motor apresentou defeito. A hélice “patinava”. Parecia que o pesadelo não havia acabado. Não hesitamos em retornar. Afinal como prosseguir com um só barco?
Um barco rebocou o outro. Na medida que subíamos de volta íamos pegando “carona” noutros barcos para aliviar o peso. Eu e o Sancho fomos quem primeiro atracamos de volta a Melgaço. Era final da tarde. O 1º dia de pescaria fracassara! Restava-nos a esperança do sábado. Combinamos fazer duas viagens até as baías no dia seguinte. E isso foi feito. Só que, sem barco, que voltara para buscar o resto da turma, não pudemos pescar. Ninguém pescou, a não ser algumas piranhas na margem do rio. Principalmente o Sancho. O segundo dia terminou sem pescaria! Voltamos ás 18 horas a Barão. Exaustos deitamos cedo.
A pensão do Aparecido, simples, quase miserável, sem conforto, não tinha água quando chegamos! Tivemos que tomar banho noutra casa. Restava-nos preparar a volta, prevista para Domingo de manhã. Eu e Sancho “desmaiamos” às 9 horas.
Toda a manhã de Domingo foi movimentada aos preparativos da volta. Saímos para comprar peixes!. Comprei 2 dourados e 1 pintado de 5 kg. Foi um rolo pra sair. Prevista para as 10 horas, sob um calor de 40° saímos às 14 horas. Eu vim no caminhão (F1000), o qual ajudei a carregar com freezer, caixas com motores, bagagens e o barco. Os demais, citados acima, viriam em seguida na belina do Sebastião.
Não havia lugar para 4 na cabine, principalmente porque o Cidão e o Betão pesavam mais ou menos 110 kg cada um e o Alberico, do meu corpo. Nos próximos 70 km de estrada, até passar a poeira, vim na cabine assentado com meia popa sem encostar. Daí pra frente passei para a carroceria, entrando entre o barco e o freezer sobre o qual estendi um colchonete. Era preciso tirar 2 malas e entrar arrastando entre a bagagem. A distância entre o fundo do barco e a superfície do freezer não era mais que 60cm. Ali completamente isolado, em meio ao pó, fumaça e a tralha toda eu tentei me acomodar. Não dava para assentar.
Como um astronauta mal instalado, pobre, sujo e miserável fiquei me virando de um lado para outro com a cabeça sobre uma mala, tentando em vão vedar o vento com o colchão, passei 10 horas, cerca de 700 km.
Foi ai que questionei a minha existência e a minha sorte no auge dos meus quase 44 anos. Meus miolos mal podiam filosofar com os trancos e porradas dos pneus no asfalto mal conservado, quase inexistente.
Me imaginei um refugiado, um seqüestrado, um recruta fugindo do “front”ou um miserável “chapa” de caminhão tentando um destino qualquer...
De ninguém, a não ser uma tímida iniciativa do Alberico, veio solidariedade, o extremo oposto do Maurino e daquele que nos rebocou quando quebramos.
Às 2 horas da manhã, quatorze horas depois de sairmos, chegamos em Santa Helena. Lá deveríamos deixar peixes e bagagens na casa do irmão do Sebastião. Ali, na casa dele, “implorei” um banho e ressuscitei de novo para a vida. Consegui encostar num sofá (não oferecido) e cochilei umas 3 horas. Fui acordado pelo ronco doentio do Cidão que no chão do alpendre resfolegava. Tomamos um café e como os demais não chegavam tivemos de continuar a viagem para não perder os peixes. De novo, preocupado agora com o Sancho, vim na cabine com uma nesga de bunda no banco e os joelhos apoiados no chão.
Foram 100 km até aqui, Bom Jesus, onde escrevo às 19 horas no hotel Diplomata. Liguei 3 vezes em Santa Helena e até 15 horas não tinham chegado. Com o carro pronto, desde 8 horas da manhã não pude seguir viagem. Almocei na casa do Maurino. Ficaram meus amigos. O conserto do carro ficou em CR$2.700,00 mais ou menos. Cerca de 500 dólares hoje. A despesa toda até agora – mais ou menos CR$3.900,00. Às 8:30 horas vou ligar de novo para Santa Helena. Que o Bom Jesus permita que tudo dê certo daqui pra frente...

Obs.: Chegaram às 11 horas da noite. Todos bem, felizmente. A viagem até Araxá não teve incidentes e lá chegamos por volta de meio dia do dia seguinte. Prometi a mim mesmo que voltaria a Barão de Melgaço: Com camisa de seda, de sapato polido e de avião, e não carregaria nem minha mala para dentro de uma suíte refrigerada de algum hotel fazenda nas proximidades de Barão de Melgaço.
E isso se concretizou, exatamente assim no dia 26 de maio de 2000.

(Esta carta foi escrita em um papel de embrulho de farmácia e enrolada como se fosse um pergaminho)

2 comentários:

  1. Dr. Montandon. grande escritor, médico, funcionário público, etc. etc., passei aqui algum tempo analizando seus escritos, forma interessante de falar da familia, da pescaria, etc.
    Mas acho que, o que me segurou foi ser o sr. Dr. de Araxa, esta cidade maravilhosa, vizinha da minha Sacramento, Eu de Bragança Paulista-SP, desde 2000 estou a ir mensalmente pousar de carro(f.1000) nas margens do Rio Araguari( como tenho dito) rio virgem de poluição, que não recebe nenhum esgoto, que nasce na serra divisora de agua com o Rio São Francisco (no topo da Canastra), e ai não fiz medicina, fiz direito, mas minha origem a roça, me levou a ter uma pequena fazenda, digo, na Canastra, na margem do Rio da Velhas. E ler os seus escritos sobre familia, sobre viagem sobre pescaria, foi um verdadeiro "voyerismo" não no sentido que normalmente a palavra é aplicada, mas espiar os seus ditos de familia, faz a gente acreditar que familia é isto. Parabens Doutor, escritor, pai, vô, quiça Bizavô, com o pé em Araxa, acho que a mais alta das cidades do Centro Oeste(defino que o Centro oeste começa ai).euflosino domingues neto

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